Há muito se sabe que a literatura infantil é coisa séria. No século XIX, na Europa, os contos de fadas foram uma das principais fontes do resgate romântico das tradições nacionais, com destaque para o estudo dos contos populares feito pelos irmãos Grimm na Alemanha. No Brasil, o trabalho de fundir o imaginário popular, com histórias infantis e a formação nacional se deu mais tarde, no início do século XX, e teve como figura principal Monteiro Lobato.
Lobato não começou, porém, como escritor infantil. Foi, antes, jornalista, ativista (iniciador da campanha “O petróleo é nosso”, que resultaria na criação da Petrobrás), empresário, editor e escritor de livros adultos. Decidiu escrever para crianças para manter o mesmo ímpeto com outro (público) alvo: “Lobato confessou que decidira concentrar seus esforços na literatura infantil com o objetivo de influenciar as mentes da nova geração, uma vez que a ‘velha’ não tinha jeito” (Murilo de Carvalho). A ideia básica deste livro é, justamente, responder a esta pergunta: ele conseguiu? Se sim, foi da forma como pretendia? Se não, de que forma?
O autor não partiu, no entanto, desse desejo de Lobato, mas de trás para frente, digamos, a partir de sua própria experiência pessoal. No centenário de Lobato, em 1982, o autor publicou um artigo chamado “Os filhos de Lobato”, no qual descrevia “a importância que a leitura daqueles livros infantis havia representado para mim, mesmo depois de adulto”. O artigo teve repercussão, e instilou no autor o desejo de estender e aprofundar as ideias e hipóteses ali apresentadas, generalizando-as para sua geração (nascida nos anos 1940) e para a seguinte. O resultado é este livro homônimo.
Um livro baseado em um largo e sólido tripé: toda uma tradição de estudos psicológicos, literários e culturais, que vão de Freud e Benjamim a Betelheim, entre outros; a análise da vida e das ideias de Lobato e de sua obra; e entrevistas feitas com adultos nascidos nos anos 1940 e 1950, ou seja, no auge da enorme popularidade de Lobato, num tempo em que sua obra não tinha a concorrência da TV e dos meios eletrônicos.
Se Lobato tinha posições ideológicas claras (como o nacionalismo) e ideias típicas de seu tempo, tinha ainda mais claras suas convicções de escritor – além de seu enorme talento. Daí que em seus livros a arte narrativa e a imaginação se sobrepõem às teses, e podem encantar e convencer tanto seus tantos pequenos leitores, marcando-os por toda a vida, como demonstra este livro. Mas marcando-os como? E convencê-los do que, afinal? As respostas são sutis e complexas – além de serem a razão do livro. Na síntese de Ana Maria Machado, “com Lobato formamos nossas noções de independência e fraternidade, nosso pacifismo, nossa recusa ao fanatismo, nosso entendimento ecológico de que queimadas são um horror, [...] que a ignorância é a mãe de medos e males, que fora da educação não há salvação, que sem livros não se faz um país, [...] que as crianças não precisam ser sempre boazinhas e podem recusar os conselhos e exemplos hipócritas que os adultos lhes apresentam, [mas] que existem valores a ser respeitados, que o humanismo é uma exigência da civilização e que cada um é responsável por seus juízos e ações”). Ufa, como diria a Emília.
(P.S. pessoal: o autor deste release pertence à geração posterior às estudadas, nascida no início dos anos 1960; ele pode, por experiência pessoal e familiar, ou seja, incluindo as demais crianças da família,
afirmar que a tese do autor parece verdadeira também para os brasileiros nascidos depois dos anos 1940-50; ainda, sua filha e sobrinhos e os amigos deles, das gerações nascidas nos anos 1980, 1990 e 2000,
reconfirmam a pertinência da tese, pois reafirmam, pela leitura entusiasmada das obras de Lobato, sua forte presença na formação e no imaginário dos atuais “filhos” do grande escritor: parte significativa das novas gerações brasileiras não se alimenta, literariamente, somente de Harry Potter e cia.; tampouco de linguagens visuais apenas).
TRECHO
É possível, como propõe Bettelheim, que o mecanismo principal de influência da literatura sobre a criança que sabe ler seja a capacidade que possuem os seus símbolos de ordenar o seu “caos interno”... Se o próprio Freud, argumenta Bettelheim, precisou nominar símbolos como id, ego e superego para ajudar a dar um sentido à incrível mistura de contradições que fazem parte da nossa vida interna, os quais são utilizados pelos adultos, que a eles atribuem grande praticidade, com mais razão ainda é bem-vinda, para as crianças, a simbologia das histórias maravilhosas. Jacqueline Held observa que os efeitos da literatura, como uma espécie de “educadora indireta”, não são perceptíveis senão no longo prazo. Isso se dá precisamente porque são efeitos de uma educação global, “fermentos secretos que agem indissociavelmente sobre a sensibilidade e sobre o intelecto”. O valor educativo do fantástico seria mal percebido, muitas vezes negado, por ser indireto, com ação subterrânea, no longo prazo, no quadro da educação global. A bibliografia recente sobre o tema é praticamente unânime ao constatar os efeitos do texto de fantasia sobre seus leitores, registrando que, em que pesem suas contradições, escopo e complexidades, o gênero tem sua individualidade reconhecida como um veículo utilizado pelos escritores para exprimir suas insatisfações com a sociedade e com a natureza humana ou para estabelecer uma “ponte” entre os mundos visível e invisível. De acordo com Sheila Egoff, “como tal, o gênero é mais exigente com seus praticantes do que as restrições do realismo”. Os textos dirigidos às crianças nessa fase tão crítica de assimilação de valores podem representar um poderoso fator de influência.
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